sexta-feira, 15 de abril de 2011

ESPELHO

     Todas as noites, infalivelmente, uma velhinha, vizinha de apartamento, bate na minha porta, na média de cinco vezes por noite. Sob o pretexto de se queixar da luz do corredor, que não acende, ela vem em busca de uma voz que não a sua, falando consigo o dia inteiro. Vive ali sozinha, acompanhada apenas de sua caduquice, que, afinal, a torna um pouco menos só.
     Cada vez que atendo as suas batidas, na maioria das vezes na porta mesmo e não na campainha, vem aquele queixume sobre a luz do corredor, que antigamente ficava sempre acesa, sobre o síndico, que modificou o sistema de iluminação, e, por aí vai. As palavras são sempre as mesmas, tal qual uma gravação.
     Faz alguns dias que me rebelei. Só ouço a primeira batida, as demais eu deleto. No início, sentia  uma certa culpa por ignorar aquele apelo desesperado por atenção.
     Abro a porta e lá está ela, figura triste, escabelada, às vezes de camisola, outras vestida para uma festa, cheia de pulseiras e colares dourados. Então começa a me falar do marido que já morreu, de como foi feliz com ele, do quanto gostavam de dançar, de conversar. Pouco a pouco vou me enternecendo com as histórias e fico ali escutando por uma boa meia hora. Depois que consegue desabafar toda sua tristeza e solidão, se despede e diz que vai dormir, pois já se sente melhor. Dá um passo e pronto... já esqueceu tudo.
     Daí a cinco minutos, novamente as batidas, só que não abro mais a porta. Fica um bom tempo naquele vai vem pelo corredor. Às vezes, bate enfurecida, queixa-se para os vizinhos porque não abro.
     Lentamente vou até o espelho, me olho, examino os traços, a expressão modificada pelas emoções e sensações, e já não sei mais a quem pertence a solidão refletida, nem as histórias contadas.

              Postado em 15 de abril de 2011.                                   

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

ESCARPAS

      Na solidão desta noite fria, chego em casa sozinha mais uma vez. Meus fantasmas me destroçam por dentro, lá no fundo do abismo sujo, enlameado das impurezas que nem chegaram a se concretizar. E assim, endurecida não sei se pelo frio da noite ou se pela devassidão do pecipício que desço vertiginosamente em direção às vísceras, já não sinto mais nada. Não há dor, não há tristeza pelo que se foi, nem um esboço de alegria pelo que possa vir, somente a dormência inerte da alma que se joga nua, sem amarras, sem destino e sem direção.
     Talvez nesse desgoverno louco, nesse desvario incontido, seja levada a algum lugar, que não imagino, nem prevejo, mas que possivelmente me espera.

                                                                                                              24/8/2010

MEDOS

  
Chuva criança
que me traz tanta lembrança
de um passado querido, algumas vezes esquecido, até...
distante? talvez, não tenho a exata dimensão
de quando molhavas a vida,
encharcavas as roupas,
subias pelas calçadas e, depois, cessavas.
E naquele momento, então
meu coração transbordava
parece que toda aquela água me lavava
a solidão sumia, meu chão existia
enquanto a rua era minha
e eu podia pular na calçada molhada
sentir o mundo vivo dentro de mim
a felicidade possível, todos os medos fora
no íntimo do ser sensações se aglomeravam...
segurança, alegria,vontade de ser boa,de viver.
Hoje és só lembrança boa,
saudade amiga, gostosa, que me acompanha
e me faz bem...
é assim que te sinto
chuva da minha infância.

08/02/2010

terça-feira, 12 de outubro de 2010

CONIVÊNCIA

Choro e não tenho vergonha de dizer
Choro ao ver a criança faminta, suja, pedindo na esquina
Choro pela criança barriguda, virada em ossos, da África, ou do mundo
Choro pela ignorância de quem se satisfaz com migalhas, sem saber de seus direitos
Choro pelo velho de olho desbotado pela desesperança que o tempo nele fez brotar
Choro pela mulher triste, sozinha, rosto rebocado, tentando esconder marcas do tempo, destruidor inclemente
Choro pela mulher injustamente chamada devassa, sabe-se lá o que lhe vai na alma,
Por todos aqueles que perderam a esperança, força maior que nos move
Choro por todos esses e não tenho vergonha de chorar

A vergonha que sinto é de nada fazer,
não importa se vai adiantar, IMPORTA FAZER.

domingo, 10 de outubro de 2010

Desordem

Escrevo como quem joga um papel ao vento. As palavras voam e caem ao acaso em alguma folha do caderno. Não mais simetria, não mais ordem cronológica, nem no que escrevo, nem na minha vida. Pulo as folhas do caderno para escrever hoje o que poderá ficar para trás ou adiante do que escreverei amanhã. Não é assim a vida? Sem sentido, sem presente nem futuro? Só o passado é certo. E, ao final, tudo será passado, não importa quando tenha acontecido.

Quero aproveitar o dia de hoje ao máximo. Não sei quando estarei novamente tão triste. Sinto que já alcancei o fundo gelado e viscoso do poço. Agora, então, começa a escalada para tentar a subida. Já sei que vou conseguir. E vai ser rápido. Porisso hoje quero registrar toda esta tristeza, a mais completa solidão deste sábado, 14 de maio de 2009.

Postado em 10/10/2010

ecos do vazio (parte II)

A mulher só se debate fragilizada entre as ondas de um mar gigantesco, em que se vê perdida. A imensidão do mar, a voracidade das ondas, feito enormes tubarões de boca aberta a amedrontam na sua incomunicabilidade. Falta-lhe alguém que a abrace; não para livrá-la daquele momento de ansiedade em que dá vazão aos seus medos, mas sim para fazer compania, para se fazer presente, para repetir o que ela já sabe, ou seja, que tem as condições necessárias para sair do turbilhão. Basta pensar, ter calma, boiar um pouco para se refazer, depois nadar... boiar de novo... nadar outra vez... Quem sabe até essas ondas, apa-
rentemente monstruosas  sejam aquelas que se formam na beira da praia.

Na praia, como na vida, tudo depende do ângulo de visão de quem olha. Se estiver de costas para a praia, o mar se mostrará infinito. Com um pequeno gesto, ao virar o corpo, pode ser que se veja a praia a poucos
metros e, certamente, a areia não se mostrará ameaçadora na sua serenidade, clareza e acolhimento.

Importante é escolher o olhar e o que se tira da bagagem que se carrega...

(escrito em 5/4/09)

Postado em 10/10/2010 às 20h 24m

sábado, 9 de outubro de 2010

ecos do vazio ( parte I )

A mulher só é triste. Não sei se é triste porque é só, ou se é só de tão triste. O sorriso lhe fugiu do rosto há tempo, foi junto com a felicidade que a abandonou, deixando-a afundada no desânimo, na falta de vontade de criar alguma coisa, de fazer.

Algumas vezes vem, como que presa por um fio muito tênue, prestes a escapar, uma vontadezinha de se ajudar, de mudar a vida, sair da letargia, dar um basta à solidão, porém, como disse, o fio é tão delicado que logo arrebenta e o pensamento muda antes mesmo de se organizar. Parece que dentro dela nasceu um abismo do qual ninguém deve se aproximar. O abismo ela conhece, reconhece, sabe o que pode esperar dele. Dos outros, ela tem uma espécie de pavor por não poder prever suas reações. O abismo tornou-se seu refúgio, seu porto seguro, por mais paradoxal que isto possa ser.

Acho que ela já esqueceu de como é bom ser feliz, levantar de manhã e sentir prazer por estar viva. Houve um tempo em que ela levantava feliz, animada. Sentia vontade de sorrir para as pessoas, de ser simpática, de dividir o seu tempo, as suas idéias, suas vontades, com os outros. Gostava também de escutar, ajudar um amigo.


Parece que foi em outra vida que ela esperou ansiosa que o telefone tocasse enquanto terminava de se arrumar para ir dançar com ele. O prazer da roupa nova, do sapato de salto, do batom colorindo sua boca já não encontra eco dentro da mulher só.


Hoje ela faz tudo sozinha. Vai ao cinema, vai comprar roupas, vai ao supermercado sempre sozinha. A solidão pode ser sempre pior. Aos domingos ela almoça só. Vai a um restaurante e senta sozinha, calada; come e vai embora. Domingo à tarde um cinema. Sente falta de ter um companheiro para comentar o filme, discutir possíveis interpretações. Não adianta, está só, terrivelmente só...